Recentemente alguns questionamentos judiciais envolvendo promoções na carreira policial-militar, reavivaram a discussão acerca da natureza das funções exercidas por policiais militares, designados para atuar junto a outros órgãos públicos.

Por óbvio, o cerne da discussão está no debate acerca de qual legislação seria aplicável, bem como quais são as funções consideradas de natureza policial-militar ou de interesse policial-militar, o que tem impacto direto sobre os critérios de promoção na respectiva carreira.

Sem pretensões de esgotar a discussão a respeito do tema, é de se considerar inicialmente que a Constituição Federal confere à União a competência para legislar privativamente, dentre outros temas, sobre as “normas gerais de organização, efetivos, material bélico, garantias, convocação e mobilização das policias militares e corpo de bombeiros militares” (art. 22, XXI, CF).

Trata-se, é verdade, de reserva legislativa feita à União, a quem compete regrar, por meio de instrumento próprio (lei em sentido estrito), os assuntos mais relevantes e de interesse comum à vida social do País.

Há que se considerar, porém, dois aspectos constitucionais relevantes. O primeiro deles é a possibilidade de delegação, aos Estados-membros, da competência para legislar sobre quaisquer dos temas elencados no rol trazido pelo art. 22, da CF. Afinal, trata-se de competência privativa (e não exclusiva), sendo que a possibilidade de delegação está expressamente prevista no parágrafo único do referido artigo.

O segundo aspecto diz respeito a reserva de lei, ou seja, a regulamentação dos temas elencados no art. 22, da CF, deve ser feita obrigatoriamente por lei federal, observado o devido processo legislativo de atribuição do Congresso Nacional.

Partindo dessas premissas, uma primeira constatação se faz importante: não existe lei federal que regulamenta a organização, efetivo e garantias das policias militares.

Sobre esta questão há que se ressaltar que atualmente, em âmbito federal, o regulamento para as policias militares está materializado por meio do Decreto nº 88.777, de 30 de setembro de 1983, com suas modificações ulteriores. O referido instrumento versa sobre a estrutura, organização e pessoal das policias militares, bem como trata do exercício de cargo ou função considerados de natureza policial-militar.

Neste último aspecto, chama a atenção o disposto no art. 21 do aludido Decreto, que enumera os casos de exercício de função considerada de natureza policial-militar ou de interesse policial-militar. Dentre essas, é considerada de natureza policial-militar o exercício, por policial militar, de função junto ao Ministério Público da União e Conselho Nacional do Ministério Público (art. 21, VI, Decreto 88.777/83).

É de se estranhar que, em absoluta falta de simetria, sobretudo em se considerando que o Ministério Público da União e dos Estados gozam do mesmo regramento jurídico (art. 127, CF), que não tenha sido considerada também de natureza policial-militar, a função exercida por policial militar designado para atuar no Ministério Público Estadual.

Quer dizer que, sob a ótica do Decreto 88.777/83, o policial militar designado atuar junto ao Ministério Público da União estaria no exercício de função considerada de natureza policial-militar. Já o policial militar designado para atuar junto ao Ministério Público Estadual, para o desempenho do mesmo mister, estaria supostamente no exercício de função de natureza civil.

Tal tratamento anti-isonômico por óbvio traz sérias implicações no âmbito funcional, sobretudo em se considerando que os policiais militares no exercício de função de natureza civil não podem concorrer à promoção por merecimento. Não fosse isto, teriam que ser transferidos compulsoriamente para a inatividade, após dois anos de afastamento das fileiras militares.

Apesar dessa incoerência normativa, há que se considerar que o Decreto 88.777/83 não é lei. Aliás, encerra matéria que sequer poderia ser objeto de Decreto, a teor do que prevê o próprio art. 84, VI, da CF.

Sobre este tema o art. 84, VI, da CF prevê que o Presidente da República somente pode dispor por meio de Decreto sobre “a organização e funcionamento da administração federal, quando não implicar aumento de despesa nem a criação ou extinção de órgãos públicos” (alínea “a”); e sobre “a extinção de funções ou cargos públicos, quando vagos” (alínea “b”).

Fica evidente, portanto, que o Decreto 88.777/83 não dispõe sobre matéria autorizada pela CF. Logo, padece de vício de constitucionalidade, por infringência ao princípio da reserva legal.

Ademais, os decretos são atos administrativos tendentes a regulamentar questões disciplinadas por lei. Ou seja, o decreto regulamenta a lei. É o acessório e não o principal.

No caso, portanto, fica evidente que o Decreto 88.777/83 não se adéqua ao ordenamento jurídico, uma vez que não se presta a regulamentar, mas sim indevidamente encerra normas gerais, que na verdade deveriam ser objeto de lei federal em sentido estrito.

Sob outro prisma, há que se considerar que em Mato Grosso do Sul, a Lei Estadual nº 61, de 7 de maio de 1980, com as alterações trazidas pela Lei Estadual nº 2.280/2001, estabelece regras de organização, efetivo e garantias da Polícia Militar de MS, disciplinando também o acesso na hierarquia policial-militar.

Tal norma foi validamente produzida, conforme autorização contida no art. 24, § 3º, da CF, que confere aos Estados-membros a competência para legislar, de forma plena, nas hipóteses de inexistência de lei federal. E, repita-se, não existe lei federal que encerre normas gerais de organização, efetivos, material bélico, garantias, convocação e mobilização das policias militares, mas apenas um decreto que padece de vício de constitucionalidade.

Não fosse isto, a Lei Estadual nº 61/80 corrige a distorção contida no Decreto nº 88.777/83, notadamente no que refere as funções consideradas de natureza policial-militar. Afinal, considera as funções de assessoramento desempenhadas por policial militar junto à “Presidência de outro Poder Estadual, do Tribunal de Contas e do Ministério Público”, como de natureza policial-militar (art. 20, inciso IV, Lei Estadual 61/80 com alterações trazidas pela Lei 2.280/2001).

Ou seja, às funções exercidas por policial militar junto ao Ministério Público Estadual foram conferidas o mesmo tratamento e grau de importância das funções exercidas pelo mesmo profissional, junto ao Ministério Público da União.

Por esta razão, é de se concluir que os policiais militares designados para atuar junto a Assessoria Militar do Ministério Público de Mato Grosso do Sul exercem, de fato, função de natureza policial-militar, assim reconhecida por lei. Logo, possuem os mesmos direitos e deveres preconizados pela legislação, para os integrantes da carreira policial-militar.

[1] Por Marcos Alex Vera de Oliveira, Promotor de Justiça Coordenador do GAECO/MS.